4/14/2007


Loucura e Capitalismo


“O corpo tinha de morrer para que a força de trabalho pudesse viver.” Silvia Federici, Caliban and the Witch, pág 141.
Alguém que tenha lido o livro de Michel Foucault “Loucura e Civilização: Uma história da Insanidade na Idade da Razão”, e que concorde com ele, irá provavelmente ter uma visão completamente diferente sobre a loucura. De facto, o conceito moderno de loucura apareceu com o nascimento do capitalismo no séc. XVII, a ‘Idade da Razão’ ou como era conhecida na altura, ‘O Século de Ferro’, uma descrição apropriada, muito mais sintonizada com esta época do que a Idade da Razão, mas também é da Razão que estamos a falar, ou antes da sua definição.
Este foi um período durante o qual a ‘razão’ tomou um significado completamente novo, em linha com a corrente visão Hobbesiana das pessoas como nada mais que máquinas, ou como era conhecida, a Filosofia Mecânica.
“A vida não é mais do que um movimento de membros…Pois o que é o coração, senão uma fonte; e os nervos, se não tantos cordéis, e as articulações se não muitas rodas, dando movimento a todo o corpo.” Hobbes, Leviathan, 1650
Foram Hobbes e Descartes que criaram a moldura filosófica para a base da psicologia moderna (até que apareceu Freud), que está intimamente ligada à concepção de disciplina de trabalho. O corpo é visto como pouco mais do que uma máquina e completamente separado da mente.
“…nós vemos um novo espírito burguês que calcula, classifica, faz distinções, e divide o corpo de forma a racionalizar as suas faculdades, almejando não apenas uma intensificação da sua sujeição mas uma maximização da sua utilidade social.” — Silvia Federici, Caliban and the Witch, pág. 139.
Federici está a descrever uma época há quatro séculos e meio mas podia também estar a descrever a nossa situação actual. Quão pouco mudaram realmente as coisas em 450 anos de capitalismo. É uma perspectiva que também se pode aplicar à nossa atitude perante o crime e a sexualidade, tendo ambos sido fundamentalmente reformulados durante o mesmo período.
À primeira vista, pode parecer que não há ligação entre a insanidade e a ‘ética do trabalho’, a disciplina da fábrica e da linha de montagem, mas o crescimento do capitalismo necessitou de uma força de trabalho ‘disciplinada’, com hábitos regulares, com o corpo a ser nada mais que uma máquina para a produção e que tinha de ser ‘regularizada’.
Assim, a ‘mente’ tinha de ser separada do corpo e se necessário, ‘normalizada’ incluindo a nossa sexualidade. Encontram-se paralelos incríveis entre o ‘Século de Ferro’ e actual assalto ‘Blairiano’ [de Tony Blair] ao indivíduo, pois foi durante os séculos XVI e XVII que vimos o aparecimento de um conjunto de leis que reformularam as relações incluindo o casamento, isto é, a abolição da lei da ‘união de facto’, a família, a sexualidade e claro o ‘crime’ (devemos recordar que o séc. XVII também foi a época da Revolução Puritana e também aqui há paralelos com a Grã-Bretanha de Blair, embora algo esquizofrénica). Foi durante este período que a prostituição foi declarada crime, tal como o adultério, a ‘vagabundagem’ e até o desemprego ou pelo menos sendo visto como ‘andar pelas ruas, sem fazer nada’.
“O que morreu foi o conceito do corpo como um receptáculo de poderes mágicos que tinha prevalecido no mundo medieval. Na realidade, foi destruído. Porque no pano de fundo da nova filosofia nós encontramos uma vasta iniciativa do estado, aquilo que os filósofos classificavam como ‘irracional’ foi rotulado de ‘crime’ ”. — Caliban and the Witch, pág. 141
Vemos aqui a invenção do manicómio e a construção das bases de um ‘sistema de justiça criminal’ moderno. A todos os níveis nós vemos o estado a controlar cada vez mais o indivíduo, pois o corpo, e logo a mente, tinham de ser controlados de forma a sermos preparados para uma vida de trabalho e especialmente para a necessidade de disciplina.
“A magia mata a indústria,” Francis Bacon
Como assinala Federici, antes deste período a magia tinha um papel real na vida do dia-a-dia.
“Erradicar estas práticas foi uma condição necessária para a racionalização capitalista do trabalho, já que a magia aparecia como uma forma ilícita de poder e um instrumento para obter o que se queria sem ter de trabalhar, isto é, um recusa do trabalho… A magia, acima de tudo, apoiava-se numa concepção qualitativa do espaço e do tempo que impedia uma regularização do processo de trabalho. Como é que estes novos empresários podiam impor um padrão de trabalho regular num proletariado ancorado na crença de que há dias de sorte e dias de azar, isto é, dias em que se podia viajar e outros em que se tinha de ficar em casa, dias em que se podia casar e outros nos quais qualquer actividade devia ser cuidadosamente evitada?” — Caliban, pág. 142
É interessante que antes deste período, ‘ganhar a vida’ como um trabalhador assalariado era, se possível, evitado a todo o custo!
“Assim, trabalhar por um salário significava cair no degrau mais baixo da escada social, e as pessoas lutavam desesperadamente para evitar isso… No séc. XVII o trabalho a soldo ainda era considerado uma forma de escravatura, tanto que os
Levellers [um movimento político britânico] excluíam os trabalhadores assalariados do seu grupo, porque eles não os consideravam independentes o suficiente para serem capazes de escolher os seus representantes. [ênfase minha W.Bowles]”— Caliban, pág. 156
Não espanto portanto porque é que é tão difícil romper os ‘laços que agarram’ pois nós estamos a viver numa sociedade que teve quinhentos anos para introduzir e aperfeiçoar a ‘ética do trabalho’, um processo que se estende a todos os aspectos da vida, tanto que tem toda a aparência de fazer parte da ‘ordem natural das coisas’.
Virtualmente todo e qualquer detalhe da nossa sociedade que assumimos como garantido é de facto o resultado de um acto consciente de vontade por parte de sucessivas gerações de governantes e detentores do capital, refinado e aperfeiçoado. Isso está agora a ruir, não porque esteja ameaçado pela Esquerda mas porque a natureza da produção sofreu uma outra revolução, uma que ameaça fazer cair 500 anos de programação social.
A infraestrutura de controlo social cuidadosamente construída que definiu cada pormenor da nossa vida como se fosse a ordem natural das coisas já não funciona, sendo assim necessário impor à força o poder do capital, mas não da forma tradicional usada pelo Fascismo mas através da tentativa de reforçar os mecanismos tradicionais de controlo de estado sobre coisas como comportamento, pensamento, e atitudes.
Nós vemos isto manifestado no ataque ao ‘poder da lei’, à saúde mental, à juventude e aos desempregados e pobres através de leis como a ‘Ordem Judicial por Comportamento Anti-Social’ [ASBO, em inglês], nas tentativas de prisão preventiva de doentes mentais com base no que eles poderão vir a fazer. A introdução de cartões de identificação, vídeo vigilância, a construção de uma base de dados nacional dos cidadãos, cada uma destas acções é pensada para manter um status quo rígido e para manter debaixo de olho o comportamento dos cidadãos, e se possível, para podar a resistência desde o primeiro galho, antes de se manifestar em algo de mais concreto e com formas realmente perigosas (isto é, para o estado).
Por exemplo, o apelo à adesão aos ‘valores tradicionais britânicos’ entra neste capítulo, pois não passa de uma tentativa de restaurar o respeito ‘tradicional' e a subserviência à ideologia dominante. A natureza ridícula desta tentativa de restaurar os ‘valores tradicionais’ num país que está tão fracturado em assuntos como a língua, a religião, a ‘raça’, a idade, até a localização, bem como crescentes desequilíbrios entre pobres e ricos, revela um estado que já não pode confiar na obediência aos ‘valores tradicionais’ para manter o controlo.
No entanto a realidade é que foi a natureza mutante do capitalismo que trouxe esta crise de legitimidade do estado para governar. Mudanças nos padrões de trabalho, colapso da base tradicional de manufacturarção, o desaparecimento da ‘família tradicional’ bem como mudou o papel da mulher (e do homem); a destruição da vizinhança e das redes de relacionamento baseadas no trabalho e na participação em sindicatos e partidos políticos; tudo isto contribuiu para a falência da confiança do estado no apoio dos seus sujeitos.
A estrutura de controlo social cuidadosamente construída, erigida durante os séculos, está finalmente e ironicamente a desfazer-se sob o impacto do próprio capitalismo. Mas talvez onde isto se manifesta mais é no nosso mundo interior, o local de último refúgio para muitos de nós, sendo a realidade tão horrível como é, e a nossa incapacidade para exercer qualquer tipo de controlo sobre as acções do estado.
Cada vez mais nos retiramos para os nossos mundos privados, algo que não passou despercebido à indústria do entretenimento que capitaliza esta retirada paradoxalmente através da criação de ‘reality shows’, que são as nossas fantasias íntimas concretizadas; também você pode fazer dança no gelo, ser um cantor rock, uma ‘celebridade’, estar perdido numa bela ilha tropical, encontrar o homem/mulher dos seus sonhos, mudar a sua vida, trocar de vida e ser outra pessoa qualquer mesmo que só por um dia, até mudar o seu sexo, idade, nacionalidade ou ‘raça’. Os pobres tornam-se ricos, os ricos pobres, e por aí fora… mas nada de fundamental muda, é tudo ilusão.
Muito tem sido feito recentemente sobre nossos estados mentais no capitalismo, apesar de obviamente sem a ligação ao próprio capitalismo. Com crescentes níveis de desordens mentais, consumo de drogas, violência ‘irracional’, colapso social e ‘infelicidade’, resumindo, crescente alienação e afastamento, a culpa, previsivelmente, tem sido posta em cima da ‘unidade familiar’, ‘falta de disciplina’, ‘falta de modelos exemplares’, ‘materialismo’, sendo este último realmente para rir se consideramos que toda a nossa ‘civilização’ está baseada em nada mais nada menos que no materialismo, a aquisição de bens materiais, alegadamente a solução para tudo que nos aflige.
Pode-se argumentar, assim sendo, que antes de embarcarmos na viagem de desmantelamento do capitalismo, é necessário que nos livremos do terrível peso que trazemos nas nossas cabeças, em si mesmo um acto que requer coragem revolucionária.


Texto da autoria de William Bowles, publicado a 21 de Março de 2007 em,
http://williambowles.info/ini/2007/0307/ini-0477.html. Traduzido por Alexandre Leite.
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publicado por ini às 22:22link do post comentar adicionar aos favoritos


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