7/19/2006

DN



Viver das pedras João Pedro Oliveira Rodrigo Cabrita (foto)

Quando se desce, a temperatura sobe. "Em regra, uns quatro graus", estima Quintino, ágil no exemplo: "Há dias, quando Évora chegou aos 42, cá no fundo subiu aos 46. É de toda esta pedra. Tudo isto é cristalino, tudo isto reflecte os raios do Sol." Vamos descer 55 metros abaixo da cota normal na Herdade da Vigária, até ao fundo de uma das dezoito pedreiras que dividem estes cinco hectares de terreno. Guia--nos Quintino, o encarregado, enquanto se desdobra em telefonemas para coordenar o trabalho dos cerca de 150 homens que aqui se empregam. A maioria são locais do concelho de Vila Viçosa, a terra a que chamam capital do mármore. E bem se percebe porquê. Tudo nesta vila histórica é montra daquela pedra. Da fachada renascentista do Palácio dos Duques de Bragança aos bancos e canteiros da Praça da República, mármore em toda a parte. Nas igrejas, nas fontes, no busto de Florbela Espanca, como em toda a densa teia de monumentos em que tropeçamos a cada passo, mármore. Nas ombreiras que emolduram as portas das casas privadas, nas bases dos candeeiros públicos, mármore. No fundo da terra, mais mármore.Só destes cinco hectares saem perto de três mil metros cúbicos de pedra todos os anos. Estamos em terrenos da Sociedade Luso-Belga de Mármores (Solbema), uma das maiores entre as muitas e muitas empresas de extracção e transformação de mármore que povoam os 195 quilómetros quadrados do concelho de Vila Viçosa e dão emprego a boa parte de uma população estagnada de nove mil pessoas.Cá no fundo, o calor subiu como Quintino previra. "Já podem ver o que esta gente sofre", achega Rui Rosa, comercial da outra unidade do grupo, a Empresa Transformadora de Mármores do Alentejo (Etma) - emprego para mais 80 - que também nos acompanha com a mesma disponibilidade alentejana. Olhando para cima e em todo o redor, acha-se uma paisagem surreal de tons lunares, entre o albino do mármore mais puro e o quase negro do xistado. Um cenário improvável de formas geometricamente polidas e traçadas a uma escala desumana. As encostas talhadas a golpes de diamante são interrompidas pelas vias onde transita maquinaria de porte proporcional a toda esta logística de exagero. Cá do fundo, o nosso tamanho muda e os homens ganham qualquer coisa de formigas. "Há bem pior", sorri Quintino: "A pedreira dos Pardais, lá adiante, já leva 170 metros de profundidade." É de outra empresa, terá de ficar para outro dia. Mas "é coisa que já não se faz", esclarece-nos o guia. "Hoje já não se abaixa tanto, as explorações começam a ser menos em profundidade e mais em largura." E as pedreiras alargam até que se unem, como já acontece com algumas das dezoito que aqui se acham. Quintino leva metade dos seus 36 anos a viver das pedras. Tempo suficiente para participar da mudança. "Há dez anos isto era tudo muito diferente, a tecnologia evoluiu muito. Antigamente, para cavar um buraco destes, eram duas ou três décadas. Agora são dois anos." Tudo o que era do esforço bruto dos homens passou para a força mecânica das máquinas. E viver da pedra é hoje uma arte com outras exigências. "É preciso escolher a melhor, o resto nem vale a pena trabalhar que nem o compram", adverte Rui Rosa, apoiado nas contas certas de Quintino: "O aproveitamento médio da pedra que se extrai não vai além dos dez por cento." O que significa que é preciso roubar uma tonelada à terra para conseguir cem quilos de mármore que se vejam. O resto acumula-se em montanhas de desperdício de pedra e terracota. Do alto do mais alto desses cumes, Quintino traça o horizonte do trabalho que há-de vir nesta terra que continuará a viver das pedras: "Daqui por uns quatro anos, se cá voltarem, já aquela estrada desapareceu. Aquela outra também. Ainda há aí muito por tirar."


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