2/18/2007


Violência urbana, violência e a desordem

A ordem social precisa ser restabelecida. Mas não se pode deixar de pensar nas causas que fomentam a violência, a criminalidade e o banditismo generalizados, que chegam ao nível de acossar o próprio poder do Estado. E a pergunta não pode ser outra: estamos num Estado de Direito? Apesar de um discurso racional falar em ordem e legalidade, o subterrâneo social funciona de outra forma.

Desde a Revolução Francesa se propagou liberdade, igualdade e fraternidade ("liberté", "égalité", "fraternité") e se realizou outra coisa, a saber, a consagração dos valores liberais e burgueses, das práticas políticas e econômicas incapazes de justiça e de uma ciência que, sem ética, atua ao lado do poder. No lugar de paz e ordem, colhe-se guerra e desordem.

O que se percebe, numa leitura retrospectiva, é que tecnologia e violência se uniram, numa associação altamente perigosa e economicamente compensadora, durante o século 20. E a experiência da Segunda Guerra Mundial demonstrou aos vitoriosos o quanto a indústria da violência pode ser lucrativa. Essa associação teve por conseqüência a potencialização ainda maior do papel da violência como meio de coação social, pois o poder (que se instrumentaliza por meio da violência) e a violência (que se reforça pela tecnologia) amplificam ainda mais o vigor humano, que, quase sempre, está voltado para a dominação e para usos políticos bem determinados, conforme leciona Hannah Arendt.

Assim, forma-se um relacionamento amigável entre desenvolvimento econômico e desenvolvimento tecnológico, entre pesquisa científica e corrida pelo domínio de potenciais destrutivos, algo muito amplamente explorado durante o século 20. Afinal, o capitalismo mundial girava, como continua girando, em torno dos grandes feitos militares, a exemplo da Guerra do Iraque, onde são investidos bilhões de dólares mensais. As bombas, os armamentos e as táticas bélicas vêm sendo cultivados e desenvolvidos como parte da própria cultura estabelecida. Trata-se, propriamente, de uma cultura da violência, implementada, racionalizada, treinada e, por isso, aceita.

O duro de admitir é quando ela muda de lado. Quando recaem nas mãos dos terrorismos, ou quando recaem nas mãos do PCC. Quando as armas mudam de mãos, percebe-se o que elas são capazes de fazer!
Seja num conflito armado entre dois Estados, seja numa guerra civil, seja numa ação terrorista, seja na expressão da ganância imperialista de uma potência econômica, ao longo do século 20, a fusão da violência com a tecnologia somente se demonstrou cada vez mais determinante e decisiva, inclusive sempre jogando a favor daqueles que possuem maior poderio econômico para investir em armamentos e mecanismos de policiamento e guerra.

Mais do que nunca, durante todo o século 20, a violência deu mostras de absoluta atrocidade e de infinita capacidade destrutiva (pense-se nas práticas de Auschwitz, pense-se no emprego de armas químicas e bombas atômicas, pense-se no uso de pesticidas desfolhantes no Vietnã, pense-se nas técnicas de tortura da ditadura militar brasileira...) e, ainda que se evoquem fundamentos históricos, motivos raciais, determinismos ambientais, necessidades sociais, fatores econômicos, motivos e estratégias políticas, a violência há de ser compreendida, potencializada ou não pela tecnologia, em se tratando de um mecanismo de amplificação do vigor humano, como algo impassível de justificação.

Nas sociedades contemporâneas, a associação entre violência e tecnologia facilita a cunhagem de um homem-objeto, de acordo com o protótipo moderno do homem controlado-ordenado, ou seja, de um homem que se torna objeto de consumo em face de uma potencialização cada vez maior de transformação da condição humana em condição inumana.
Ora, produzimos esses homens-objeto toda vez que um idoso deixa de ser atendido em um plantão da Previdência Social, a cada vez que uma criança morre por desnutrição, a cada vez que um cidadão tem justiça denegada, a cada vez que se recorre à corrupção do Estado como única forma de "azeitar" o funcionamento da Justiça. Nós só não nos dedicamos a esses temas, mas eles estão aí.

Não é de hoje que experimentamos a sensação de vivermos em uma guerra, ao nível internacional, e muito menos é de hoje que se fala em guerra civil no Brasil por exemplo. O Rio de Janeiro já parou diversas vezes por conta disso.

É certo que toda prática de violência envolve a quebra da dignidade da pessoa humana, seja ela psíquica, seja ela física, seja ela de caráter moral. A violência, como leciona Guilherme Assis de Almeida, em sua tese de doutoramento pela USP, vem entendida como uma ação ou omissão invasiva da esfera de outrem, capaz de gerar prejuízo (moral, físico, psíquico), e é exatamente a exploração dessa esfera da condição humana como prática de domínio e exercício de maceração e domesticação dos corpos que se deve considerar atentatória de todo e qualquer entendimento lúcido acerca dos direitos humanos, sobretudo em nosso contexto de tumulto social.

Crime organizado, corrupção, nepotismo, evasão de divisas, desvios eleitorais, sucateamento do Estado, privatização do público, negligência com causas públicas, crimes fiscais... se querem causas, aí estão. Tudo isso faz parte do samba que enovela e balança, em berço esplêndido, a brasilidade, e, certamente, isso não é de hoje.

Se as causas dos problemas nacionais não são de hoje, também se pode dizer que humanidade e bestialidade já se confundem há um certo tempo, como afirma Habermas. Parece que se vive numa terra alienada de homens, mas habitada por arrogância, estupidez, desatino e irracionalidade. Chegamos tanto a estranhar o outro que no outro vemos o inimigo. O inimigo do PCC, o inimigo burguês, o inimigo imigrante, o inimigo muçulmano, o inimigo sem-terra. O que estamos fazendo de nossa ética?

As experiências do passado, construídas na base da exploração e da injustiça, não deixarão de visitar o cidadão de hoje. Pouco muda na transposição do milênio. A continuidade do passado de explorações e desigualdades se projeta em direção a um futuro corroído em suas entranhas.

A história humana, com suas contradições e vivências, trilhará o sentido dialético que a ela sempre trouxe o sabor amargo do retorno ao passado doloroso, mas que também sempre trouxe o livre frescor da brisa da renovação e do esquecimento.
Está em nossas mãos o poder de mudar o sentido dessa experiência, muito mais do que propalar soluções finais, como pena de morte e outras formas de legitimação da ação irrestrita do Estado. O restabelecimento da ordem social é urgente e necessário, mas a ação imediata não substitui uma ação de fundo que deve penetrar nas entranhas dos problemas socioeconômicos brasileiros.

O Estado de Direito precisa encontrar sua existência prática na vida dos cidadãos, não haja dúvida. Antes, no entanto, é necessário que se pense que a reforma das instituições passa pela reforma das mentalidades e das consciências, bem como das práticas, que as norteiam em suas metas e juízos mais corriqueiros.

Se há algo em que pensar, este algo se chama: justiça.

Eduardo e J.A. (Infocalipo)


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